A criminalização do não recolhimento de ICMS e a pandemia

Em dezembro do ano passado, o STF, por maioria dos votos, consolidou o entendimento de que pode ser considerado crime de apropriação indébita, o não recolhimento do ICMS, em operações próprias ou em operações de substituição tributária, ainda que devidamente declaradas ao Fisco.

Com a decisão, restou fixada a seguinte tese: “O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço, incide no tipo penal do artigo 2º, II, da Lei 8.137/1990” (RHC 163.334).

Em meio à crise econômica ocasionada pela Covid-19, empresários têm refletido sobre a ineficiência do Estado e sobre o atual sistema tributário complexo e inoperante.

Estabelecimentos comerciais não essenciais foram fortemente afetados pelas determinações de isolamento social. Ante a redução drástica nas vendas e inadimplemento em escala por parte dos clientes, o cenário é de aflição e incertezas.

Como se já não bastasse as preocupações com a paralisação das atividades, a possibilidade de redução do quadro de funcionários, as receitas e impactos financeiros, os administradores temem a responsabilização criminal pelo não recolhimento de ICMS.

A referida decisão tem provocado insegurança jurídica. Destacamos aqui dois pontos relevantes, o primeiro se refere a expressão “contumaz”, que o STF não trouxe definição, dificultando a distinção entre mera inadimplência da condição de devedor contumaz.

O segundo ponto consiste na necessidade de caracterização do dolo, que é elementar para a imputação da responsabilidade pessoal dos administradores das empresas. O dolo é um elemento subjetivo, que nesta situação consiste na consciência (ainda que potencial) de não recolher ao Fisco o valor do tributo devido.

Como pressupor a prática do delito pelo contribuinte que registra, apura e declara em guia própria ou em livros fiscais o imposto devido, mas deixa de recolhê-lo?  Nasce a partir daí a necessidade de examinar minuciosamente o caso concreto para distinguir os comerciantes que enfrentam dificuldades dos que adotam a prática incorreta.

Esses dois pontos, tornam o fato típico sujeito à interpretação, seja da autoridade policial para abertura do inquérito, ou do Judiciário no julgamento da Ação Penal. Embora os agentes públicos sejam altamente qualificados, atestar a conduta desses devedores e enquadrar nos novos parâmetros do STF, representa um grande desafio, uma vez que gerir uma empresa em nosso país, diante das inúmeras ineficiências do Estado, é algo extremamente difícil, ainda mais em um momento de crise.

Em tempos de pandemia, situações como impontualidade no recolhimento de tributos, litígios com fornecedores, multas de órgãos regulatórios etc., passam a fazer parte do cotidiano empresarial. Basta uma interpretação equivocada, para que o contribuinte inadimplente passe a ser considerado “devedor contumaz” que agiu “com dolo de apropriação”.

O entendimento do STF, representa um retrocesso sem precedentes, pois as vicissitudes do mercado colocam em risco e inviabiliza a atividade empresarial. Estudos apontam que só no Estado de São Paulo haveria mais de 180 mil empresas devedoras de ICMS.

Ante o atual cenário jurídico e econômico do Brasil, os administradores de empresa se perguntam se poderiam, neste momento de calamidade pública, já reconhecida e decretada, serem responsabilizados penalmente pelo não recolhimento de tributos, especialmente o ICMS.

Em razão da crise que se estende há alguns meses, empresários estão sendo levados cada vez mais a flexibilizar o cumprimento das obrigações tributárias, pois os poucos recursos disponíveis no caixa são destinados à folha salarial, ou à quitação das obrigações essenciais para a manutenção do negócio (compra de insumos, custos de energia, aluguéis, pagamento de financiamentos, etc.), ao invés do pagamento dos impostos.

Perante os conflitos de deveres igualmente relevantes, não há como se exigir que o empresário haja de outro modo, logo, não há como sustentar a existência de dolo na conduta deste contribuinte que declara como devido, determinado tributo, mas não procede ao seu recolhimento em situação de sobrevivência da empresa.

Assim, surge a possiblidade de se excluir a responsabilidade do autor do suposto crime. A essa causa de exclusão de culpabilidade se dá o nome de inexigibilidade de conduta diversa (ou estado de necessidade), que tem como efeito o afastamento da incidência do crime, ainda que a conduta praticada pelo agente seja típica e antijurídica.

Resumidamente, trata-se de uma causa justificante capaz de excluir o crime da conduta do empresário, que ultrapassa os limites legais, como forma de assegurar a sobrevivência da empresa, algo não provocado intencionalmente e inevitável.

Por fim, cumpre salientar que embora a inexigibilidade de conduta diversa seja uma tese amplamente aceita por nossos Tribunais em matéria penal-tributária, a mera alegação quanto à impossibilidade de agir diferente diante da calamidade pública causada pela pandemia, não possui por si só o condão de dissipar os malefícios de uma condenação criminal.

Deve ser feita uma demonstração concreta de que as dificuldades enfrentadas pela sociedade empresarial compunham um quadro excepcional, imprevisível e invencível, impeditivo de que o agente atuasse conforme o ordenamento jurídico.

Por Carolina Teles. Advogada associada ao escritório Durvalino Picolo Advogados Associados.

Os sócios e associados do escritório estão monitorando os impactos legais da COVID-19 no Brasil, estando todos à disposição para auxiliá-los da melhor maneira possível.